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sábado, outubro 17, 2015

O velório de minha avó

Ainda sinto o cheiro dela no quarto. Um cheiro de quem sofreu.
Vai fazer um ano que a vó se foi, agora em Novembro, mas eu acho que ela já tinha partido há muito tempo atrás. Foram mais ou menos cinco anos de sofrimento, não só dela, e esse tempo inteiro em demência crescente, parecendo que o cérebro dela ia se consumindo.

Ela gritava de noite por ajuda, como se estivesse sendo atacada por algo, e começava a se confundir com o tempo que nós vivíamos, relembrando fatos da infância, mas como se ela os vivesse naquele momento.

Minha mãe acordava toda noite de madrugada para cuidar dela, trocar as fraudas geriátricas e acalmar a pobre senhora que enfrentava o fim da pior maneira possível. Seus ossos se tornaram plástico, com o crescimento da osteoporose.

Os remédios iam se tornando cada vez mais complexos e restritos. A mistura deles causava um excesso de efeitos colaterais terríveis e as veias da vó já eram finas e sensíveis como seda. Ela se sentia sozinha no quarto e chamava minha mãe o tempo inteiro, consumindo as energias dela, pois a minha mãe também tinha várias tarefas para realizar na casa durante o dia e já não dormia mais durante a noite.

As coisas ficaram complicadas, na medida em que eu trabalhava de manhã bem cedo e meu quarto é ao lado do dela. Eu também já não dormia muito, e acordava seguidamente com os seus gritos desesperados. Em pouco tempo comecei a dormir na sala, o lugar mais afastado.

Mas não foi só dela que eu me afastei. Fugi dela, do câncer da mãe, do relacionamento com o meu pai, com a minha irmã também... Dos amigos e até do coração. As noites que já eram difíceis e dramáticas, se tornavam por vezes vazias. Um sentimento de dor no meio do peito, como se faltasse algo e tudo o que a alma queria era gritar de agonia. A agonia da solidão.

A minha avó foi piorando, então. Minha mãe já não aguentava mais, e vieram psicólogas, doutores, padres. A gente contratou uma cuidadora e ela ficou de noite com a vó. Nós não gostávamos muito dela, pela falta de paciência e jeito com a senhora, mas era o que o dinheiro podia pagar... Foi complicado de conseguir alguém naquela faixa de preço. A família já não podia financiar um pagamento melhor, com tudo o que acontecera com a empresa do pai... Estávamos vivendo um dia de cada vez, sem saber se sobraria dinheiro para a outra semana.

A dona Ercília começou a visitar o hospital, tendo então edemas pulmonares, e às vezes ia pela própria demência de achar que havia algo com ela, como falta de ar e dores, mas chegando lá era só um retorno para casa, pois não era constatado nada que não fosse próprio da idade.

Até que um dia, em uma dessas visitas no hospital e família em ruínas, veio a notícia de que a vó tinha sofrido uma parada cardíaca lá no hospital e minha mãe ficou muito preocupada. Eu achei que ela fosse sair dessa, como sempre, mas de noite meu pai chegou no meu quarto exatamente como estou agora, de costas para a porta digitando no notebook. 

"-Vini, a tua avó faleceu, tá."

Acho que a frieza daquelas palavras me chocou mais do que o próprio fato.
Fui para sala, fiquei sentado no sofá, olhando para a TV desligada e me perguntando por que tudo aquilo acontecia. Chegou minha mãe do hospital, minha irmã, meu tio. Pegaram algumas roupas aos prantos e saíram. Abracei quem eu pude e de certa forma, senti um certo amor e acolhimento naquela hora.

Recebi a visita da "ex", (ainda não me acostumei a chamar assim). Carinhosa como sempre. De manhã, acordei sem despertador. Parecia que o meu corpo sabia exatamente a hora de acordar, e fui até a capela em que o velório ocorria. Lá jazia minha falecida avó... Rosto pintado de maquiagem, dormindo tranquilamente o sono eterno. A gente não diria que era eterno, pois parecia que era somente um sono da manhã, como tantas vezes eu já havia visto.

Mas não havia gritos, não havia choro, ou dor. Era somente aquela senhora que tanto sofreu, ali deitada quietinha, com flores aos seus pés, pois o caixão tinha ficado muito grande. Naquela manhã chorei, como se tudo tivesse ruido, mais do que o normal, mas ao mesmo tempo o silêncio da morte havia trazido a paz e era isso que os parentes comentavam.

Parentes mais distantes, que nós há muito tempo não víamos e que comentavam como eu estava grande (obviamente não sabiam dos meus 22 anos, caso contrário não diriam isso). O padre chegou no finzinho da tarde e rezou a missa. Acreditei que a vó estava no céu, pois era bom acreditar em tal coisa... Fazia a dor ficar menos aguda, pois do contrário, a perdia para sempre. Rezei, para um Deus que não acreditava, mas rezei.

Levamos o caixão até o carro. Fomos até o cemitério, onde ela fora enterrada e assistimos todo o processo. E pronto, ela tinha ido e era isso. Nada que você pudesse fazer sobre. Impotência.

Aí veio a missa de sétimo dia e de um mês... E eu fui, porque minha mãe precisava de força e porque eu achei que minha vó ficaria feliz com a minha presença lá.

Nunca fiquei com remorso de não ter dito eu te amo... Eu não tinha problemas em falar isso para a vó, muito mais porque ela falava para mim, do que qualquer coisa. Me pergunto às vezes se o meu afastamento da igreja na época, era na verdade o motivo do sofrimento da minha avó... Me parece que com a junção de vários outros fatores, faz sentindo também pensar assim, por isso peço perdão a ela... Eu não conhecia o amor de Deus. Mas se você tiver algo a ver com o fato dele ter me encontrado, obrigado vó. Foi a melhor coisa do mundo, de verdade.

Eu me sinto culpado com um pensamento perturbador, que eu queria compartilhar e sair de vez da minha cabeça...
As coisas ficaram melhores depois que a vó faleceu. Minha mãe pode recobrar a vida que ela tinha perdido e eu voltei a dormir no meu quarto. As coisas foram se ajeitando ao redor da nossa casa, de forma que a família pode se reestruturar. Até posso pensar, em todo caso, que a vó cuida da gente lá de cima e por isso as coisas se acertaram, como uma guardiã. Eu não me importo se você concorda, ou não com isso, mas peço que respeite o meu pensamento, pois não vou forçar a vocês pensarem assim como eu, Só compartilho.

Embriago-me da bebida da tristeza essa noite, tendo em vista que encho o cálice com o sangue do meu coração e derramo o que sobra sobre mais um post deste blog. Mais um pouquinho do sangue amargo que conviveu no meu peito durante todo esse tempo e que eu luto cada dia, para fazer a troca por um mais fresco. 
Não tenham medo, era o que ele dizia 365 vezes no livro. Sejas a corda que me dá segurança na queda. 

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